Uadjete: A Cobra Sagrada do Nilo

 


Uadjete: A Cobra Sagrada do Nilo

No coração do Delta do Nilo, onde papiros dançam ao vento e o solo pulsa com a fertilidade ancestral do Egito, uma deusa serpente vigia silenciosamente há milênios. Seu nome é Uadjete — ou Wadjet, para os gregos — e sua presença é tão antiga quanto a própria civilização egípcia. Guardiã do Baixo Egito, protetora dos faraós e símbolo de soberania divina, Uadjete é uma das figuras mais fascinantes e duradouras da mitologia egípcia.

Das Águas do Delta à Coroa do Faraó

O nome Uadjete deriva da palavra egípcia para “verde” ou “papiro”, evocando a exuberância do Delta do Nilo. Sua origem remonta à cidade de Per-Uadjet (Buto), um dos mais antigos centros de culto do Egito. Lá, antes mesmo da unificação das Duas Terras, ela já era reverenciada como uma deusa cobra — uma naja ereta, pronta para atacar qualquer ameaça.

Mas Uadjete não permaneceu confinada ao seu santuário no norte. Com o tempo, ela ascendeu ao panteão nacional, tornando-se o símbolo vivo da realeza egípcia. Sua imagem, o uraeus — a cobra erguida na testa do faraó — tornou-se um dos ícones mais reconhecíveis do poder egípcio.

A Protetora das Duas Terras

Com a unificação do Alto e Baixo Egito, Uadjete uniu forças com Nekhbet, a deusa abutre do sul. Juntas, formaram as “Duas Damas” (Nebty), protetoras do faraó e da nação unificada. Essa aliança divina não era apenas simbólica: ela estava gravada nos nomes reais, nos templos e nos rituais de Estado.

O uraeus de Uadjete não era mero adorno. Acreditava-se que ele cuspia fogo contra os inimigos do faraó, protegendo-o em batalha e purificando sua presença. Era a manifestação visível da autoridade divina — uma serpente flamejante que dizia: “Aqui reina o escolhido dos deuses.”

O Olho que Cura

Uadjete também está ligada a um dos símbolos mais poderosos do Egito: o Olho de Hórus, ou Udjat. Em algumas versões do mito, é ela quem recupera o olho perdido de Hórus após sua batalha com Set. Esse gesto de restauração e cura reforça seu papel como deusa benéfica, capaz de devolver a ordem ao caos.

O Olho de Hórus tornou-se um amuleto amplamente usado, símbolo de proteção, saúde e integridade — atributos que refletem diretamente o poder de Uadjete.

Culto e Legado

Embora seu templo em Buto não tenha sobrevivido com o esplendor de Karnak ou Luxor, sua importância religiosa era inegável. Uadjete era invocada em rituais de proteção, em cerimônias reais e até em feitiços funerários. Sua imagem aparece em amuletos, estelas, sarcófagos e murais — sempre vigilante, sempre protetora.

Mesmo com a ascensão de novos deuses e o declínio do Egito faraônico, Uadjete nunca desapareceu completamente. Seu legado vive na arte, na arqueologia e na memória coletiva de uma civilização que via na serpente não o medo, mas a força.

A Cobra que Não Dorme

Uadjete é mais do que uma deusa antiga. Ela é um arquétipo de poder, proteção e soberania. Sua evolução de divindade local a símbolo nacional reflete a própria trajetória do Egito: da fragmentação à unidade, da terra ao trono, do mito à eternidade.

Na testa dos faraós, ela não era apenas um ornamento — era um lembrete de que o poder verdadeiro deve sempre estar alerta, pronto para defender, restaurar e proteger.


Por Albino Monteiro